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A fuga do pensamento, a distração, negar-me e ignorar minhas reclamações diárias, não, não existem, já foram. A força da palavra. Como é aquilo que dizem, mesmo? Ah, sim, pensamento positivo, né? Ok, ok, então vamos. A força da palavra. Não me sinto só. Não estou em depressão. A força da palavra. A fé que ainda não se incrustou em mim - ainda espero, até que sou paciente pra esse tipo de coisa. Estou esperando, também, pra ver se aprendo a escrever.
A fuga, o sarau. Novamente a pianista, só que esta era brasileira. Mas de onde eu estava, nada via. O que ficava pra mim era o reflexo das mãos dela na madeira envernizada do piano de meia cauda. Dois borrões apressados, querendo desesperadamente dizer-me algo, mas não consegui ouvir. Esforcei-me, mas foi difícil sentir qualquer coisa. Triste pena, esta a que me submeto, cego: sentir. No entanto, foi fácil notar o vazio entre uma palma e outra, quando os espectadores, eufóricos, acompanhavam a banda com suas mãos. O percussionista marcava justamente estes vazios, importando-se com a parte menosprezada da música. (seria eu um contra-tempo de mim mesmo?)
Enquanto outro homem interpretava o tecelão em seu contra-baixo, dedos ágeis, pensamento longe, o violinista encantava, com seu sorriso, as senhoras de meia-idade que à minha volta se encontravam. A não-palavra também tinha uma força imensa neste momento.

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roer as unhas até aparecer uma ponta de alma. até não sobrar mais nada. é com os ossos que me dirijo a ti, com muito amor. ah, sim, meu caro. tu não sabes da felicidade que sinto por estar aqui. por celebrar novamente contigo a minha ausência de palavras e inspiração. a fantasia do cérebro, seu fetiche em ser apenas objeto, acessório de decoração, estofamento do esqueleto que também tem andado sem muita função. afasia e delírio, chames como quiseres - a questão é que não tenho mais gênero, não agora, pelo menos. por enquanto vou pulando de palavra em palavra, como um pesadelo que não quer acabar pois sabe que quando acabar vira morte e aí acaba pra sempre.
mas eu acabo acordando. e a lembrança vem, familiar e assustadora, seria uma pré-regressão? um saco cheio de olhos e, ao fundo, música clássica tocando. não. não pode ser mais que um produto de minha pobre imaginação. tenho medo. de nunca me lembrar, por favor, segura a minha mão. porra, já não é humilhação suficiente eu ter que te pedir todos esses favores? lê meus pensamentos, eu te imploro. estou cansado. falar é triste. a fala é uma de minhas piores tragédias.