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cantiga de ninar na minha mente. tamborilando os dedos, murmurando. tento acompanhar a melodia, mas minha voz não é nem grave nem aguda o suficiente. converso com as pessoas implorando a deus para que elas se calem. as pessoas são boas, eu que não tenho o que dizer. antes tinha vontade de prolongar a conversa, o dia, a sensação. acabei esticando tanto a vida que hoje ela está flácida, seca, incolor, desvanecendo-se à minha frente. não. desvanecer não é uma boa palavra, mas não consigo lembrar a palavra que gostaria de usar. as pessoas são boas. preciso me esforçar, não desanimar de novo, não deixar tudo se desfazer mais uma vez. mas, enquanto eu escrevo. vários neurônios vão me morrendo - é uma catástrofe em seu apogeu - e me agarro no que ainda sei que é certo, no pouco de referência que me restou, na realidade que sempre me foi tão sensual, atraente, uma prostituta maldita, à qual estarei sempre preso. gritando em meus ouvidos. mas sou burro demais pra escutar, então durmo. acordo e encontro pessoas que considero serem amigos meus, companhias queridas, sem as quais nada sou. elas me encontram e continuam existindo. eu vou morrer sem ter obtido êxito nisso, tenho quase certeza. na tentativa de ser alguém e amar o ser que criei dentro de mim, acabo sugando os eus dos outros e ficando sem nenhum pra chamar de meu. e todos vão embora - fico eu, fica a música, suave. as pessoas são realmente muito boas.

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Quando estou beirando a insanidade percebo que é hora de voltar a escrever. Mas, quando volto, deparo-me, admirado, com a certeza de que não há nada a dizer. Às vezes tenho vontade de virar os olhos pra dentro da cabeça, reconhecer a massa cinzenta, ter mais familiaridade com ela. Mapear cada linha de raciocínio. Quem sabe, em alguma trilha, eu encontrasse um assunto perdido, uma argumentação que levaria alguém a algo. Não há mais conclusões, entretanto. A maioria dos livros que eu leio fala exatamente a mesma coisa, de modos diferentes: lutamos, qual loucos, para achar meios novos de nos expressarmos, teorias e conceitos que consideramos ser revolucionários, que temos prazer em achar que eles nunca foram pensados por outrém. Amamos mentir para nós mesmos. Amo ler algum texto perdido e supor que de lá sai algo, não apenas trabalho, academia, reconhecimento. Reconhecimento? Estima? Não. Quero que saia um ser humano. Que saia de entranhas que sangram. Com erros, repetições, quiçá alguns clichês necessários. Um sujeito meio-termo, com quem eu possa me identificar e ao mesmo tempo admirar por não ser parecido comigo. Um casamento entre Stephen e Leopold. No que daria?