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é engraçado quando me encontro num dia desses, em que as pessoas que eu gostaria de ser esbarram-se umas às outras, não há lugar, não há educação, sequer coordenação de pensamentos - muito menos. é uma festa. chegam também as pessoas que eu gostaria de conhecer, as que eu gostaria de amar, e elas cumprimentam aqueles que eu gostaria que fossem meus pais. a reunião está muito animada, todos têm assunto, todos são espontâneos, naturais, com personalidade forte e demarcada, previsível - no melhor dos sentidos. os sentidos, por sua vez, estão controlados e agradam, em sua harmonia irritante. todos vão me matando, aos poucos, com sua perfeição. chego a um ponto em que é insuportável sonhar. preciso desesperadamente de um pouco de realidade. mate-me, por favor. não sou um bom personagem.

44

silêncio. apenas o chiado do vinil que chegou ao fim. é o que basta aos meus ouvidos cansados. aqui dentro há um barulho incontrolável, se você pudesse ouvir, ah, meu caro. se pudesse ouvir... saberia porque eu sinto-me enlouquecer, e como isso se fortalece em diferentes momentos do dia. as horas. mas, confesso, não sou de todo lamento. muita coisa se melhorou, muita coisa virou luz - hoje posso sorrir enfim. até comprei um diário de viagem. quem diria? sim, ainda faço planos, e ainda tenho esperança de que um dia conseguirei cumpri-los. por enquanto escrevo, é o que está ao meu alcance. é o que sempre estará. pode confiar - você sempre me lerá. e não encontrará muita coisa que já não estava em você mesmo. pois quem sou eu senão você?

43

terminar um livro e nunca mais voltar a abri-lo
é despedir-me de alguém
com aquele bicho no estômago
aquela vontade de imaginar
que todas as pessoas
- nas ruas, nas tabacarias,
nos fundos dos espelhos -
podem ser, meu deus,
elas podem ser
aquela que, sem lutar
deixei ir