cento e vinte

Adorava segurar a bexiga cheia, quase explodindo. Gostava de testar os limites do seu corpo, mesmo de uma maneira babaca como essa.
- Cê não vai me levar pra passear?
Ela perguntou ao Cortázar. O gato não respondeu. Na verdade ele nem estava olhando pra ela.
- Ah, é, esqueci que gatos livres não saem. Sou humana, presa; saio, pois.
Ela tinha trabalho. Tinha dois ônibus pra pegar e um tanto de chão pra caminhar, todos os dias. Mas dava o seu jeito de fingir que era tudo uma puta surpresa. Sua espontaneidade chegava a machucar o olhar alheio, devia ser admirada com moderação. Dias programados e cinzas apareciam, também, para não matá-la de tédio. Há que se mapear, de vez em quando.
Logo cedo deixava o seu apartamento, no centro, com uma sensação estranha de que o havia perdido. Parecia um bebê em formação: precisava olhar para as coisas pra lembrar que elas existiam. Aproveitava o ônibus lotado da Orosimbo Maia para entrar em contato com um calor incômodo e necessário. Tentava ler, mas logo envesgava e enjoava. Mas não queria ouvir música. Colocou, então, o rádio de seu celular numa estação que só dizia as notícias recentes, e logo se sentiu transportada para uma época que não conheceu (talvez aquele fosse o seu masoquismo preferido), uma época de ouvir vozes, prestar atenção, sem rostos, sem telas, sem retinas descoladas. Viciada, deixou-se extasiar e perdeu o fio da meada. Perdeu também a porra do ponto.
- Não importa, ainda tenho rótulas pra desgastar.
Na volta pra casa, separou livros de poesia para tentar ler no dia seguinte.

2 comentários:

Monalisa disse...

Fiquei um tempasso sem entrar aqui, não cometerei o mesmo erro. Gostei muito, vc escreve muito bem!!

F. Carolina disse...

Eu queria a rotina de um gato...

Beijo procê e pro Cortázar.