32

Sinto-me como se fosse um absurdo estar bem. Fico estranho quando não há nada de errado. É a este nada que me resumi, caro leitor imaginário. Sem relatos, sem mundo exterior, sem imaginação. Apenas sensações, somente o registro do que ficou - eu e meu corpo plasmado. Volto ao estranhar: sentir medo da chuva que vinha me deu um prazer que há muito não me atingia. E o medo inocente me lembrou que estava faltando o medo doentio, e este veio imediatamente cumprir presença. E lá se foi meu dia de novo.
E o não estar apaixonado por ninguém. Vive-se em independência, afinal? Só o que vi até agora foi caos. E a falta de sonhos - passar o dia tentando vivê-lo, e se sobrar tempo, reciclar algum delírio deixado de lado. E o desinteresse, ah, essa falta de apego que se defronta a todo segundo com a minha carência patológica. E esses dias. Essas horas. Em que o foco se perde, a infância volta, e a pele grita. Ânsia. Um dia eu volto pra mim mesmo. Prometo-me.

31

subsolo
nado num
mar de livros
que nunca irei ler
livros tais que só enchem
meu ser de algo
que não possa
chamar-se
vazio

30

solidão.

29

E os olhos, esses olhos que não querem fechar. Em mim tudo tem vontade própria. Menos eu mesmo. Os ossos da face, cansados, dizem-me que já não sou mais tão novo assim. Olheiras escuras que não mentem. Deixa estar, não há nada a esconder. O único que não enfraquece é o coração, maldito. Pelo contrário - fica cada vez mais resistente. Assim como o cérebro, que acompanhando o caminho inverso, cada vez raciocina menos. Apaixono-me mais uma vez, como se eu tivesse começado a existir hoje de manhã. E não consigo voltar atrás... Afinal, essa coisa de burrice tem que fazer algum sentido, pelo menos.
A conclusão? O sentido pra tudo isso que escrevo? Estou procurando nos bolsos, nas gavetas, no paletó, no maço. Não está em lugar nenhum. Juro que os tinha visto ontem mesmo, bonitinhos. Mas me escaparam, de novo. Danados.

28

- Oi, há quanto tempo!
- É mesmo, né... E aí, tudo bem? Como tá?
- Estou bem, e você?
- Ah, não muito, na verdade... Engraçado, eu sempre tenho te dito isso, nas poucas vezes que nos temos visto.
- Você diz isso desde que eu te conheço, para dizer a verdade.

(vida que mata, morte que vive)

27

A música que eu ouço no momento vale por todas as músicas do mundo. O cigarro que fumo. Os amores que eu tenho. Os amores que eu não faço. As palavras que não escrevo. Os minutos que passam por mim. Os olhos que fecham em devaneio. A fumaça que eu respiro. O som que nunca ouvirei. As vidas que já tive. Os jogos que fazem parte da minha vida. As pessoas que nunca verei. A boca que não vai me beijar. As tatuagens que ainda esperam pra vestir meu corpo. O fôlego que ainda não perdi. Os passos dados. Olhares perdidos. Pensamentos livres e os ainda acorrentados. Os movimentos que meu corpo ainda não fez. A dança latente. Tudo em mim, e o mundo nunca em mim, e eu nunca no mundo.

26

Parece contraditório - as horas mais especiais dos meus dias são aquelas em que estou semi-consciente do que se passa à minha volta, e ao mesmo tempo atento como nunca. O torpor é incontrolável, tarde demais quando sinto sua presença. A dormência chega, as veias do pescoço começam a latejar e o mundo(?) forma-se sob uma nova ordem em minha mente. O medo nunca vai embora; medo bom, às vezes. Minha vista fica borrada e o tempo parece não fazer mais sentido. O sentido parece não fazer mais tempo.
Os pés se enroscando em sincero carinho, no chão sujo, as mãos segurando firme nos canos presos ao teto, a janela aberta e o vento e a fumaça já com ar de familiariedade. Os pelos, os dentes, as roupas, o cheiro, tudo grita pra mim, enquanto tento acordar deste sonho que não poderia ser mais real.
No concerto não foi muito diferente. Nomes estranhos, harmonias desconhecidas e a luta para continuar sóbrio, para não me perder dentro de mim mesmo. Fecho os olhos para tentar entender a música, mas não consigo. Toca-se uma partitura que ficou perdida por oitenta anos em uma biblioteca dinamarquesa. Bohuslav Martinu encontrou seu "filho perdido". Continuo não entendendo nada. Aprecio enquanto há tempo.

25

(pensando alto)
a mulher que me inspira está morta.
todos aqueles que me inspiram, dão-me sensação de prazer ou o toque a uma parte ínfima do saber estão mortos.

e não há nada que eu possa fazer em relação a isso. apenas aceitar, transcender, acreditar. reler os textos, ouvir as músicas, assistir aos filmes e me apegar religiosamente aos registros deixados. como se fossem a única prova legítima de que já existiram, por um curto período de tempo, estes seres. o vestígio daquilo que me fez quem sou hoje, as partículas que se unem e formam a minha matéria (in)consistente.

24

Morrer. Deixar de existir. O que isso realmente significa?... Gostaria de saber por que continuo me preocupando tanto com isso, mesmo que não passe de uma preocupação inconsciente, involuntária, uma doença que se desenvolveu em mim e a que reagi passivamente, como um câncer. Estou impregnado de pânico, e temo a insanidade. Assumindo meu estado como tal, aceito qualquer ajuda. Anseio pela volta dos tranqüilos dias de minha amada rotina, que sempre tanto estimei. Anseio a volta de mim mesmo. Em algum passo contra o vento minha personalidade se desgrudou de mim e não pude fazer nada a não ser vê-la indo embora e fechar-me numa breve despedida. Vazio.

23

Meu rosto dói - rangi os dentes o dia inteiro. Tentei ler, mas as palavras me escapam. Sinto que estou ficando mais estúpido a cada dia que passa; não consigo terminar uma tarefa sequer. Parece que estou deixando de existir aos poucos, que meus neurônios estão indo embora um a um, pra onde não sei. O mesmo lugar para onde a minha libido acabou escapando também, talvez. Estou completamente neutro. Nada para sentir, para querer fazer. Sem objetivo, vida sem gosto, tela sem cor, moldura vazia. Textos cada vez menores. E, como a companheira que restou, a triste certeza de que ninguém pode me ajudar agora. Fico paralisado durante alguns segundos, pensando no nada, esquecendo-me de continuar respirando. Angústia.

22

Peço desculpas novamente, caro leitor imaginário, pelos pensamentos e sensações que foram mal-regurgitados em nosso último encontro. Estou em fase de aprendizagem; espero portanto que leve em conta os tropeços no caminho.
A vida passa se esfregando na minha cara. Sua pele quente e pulsante cola no meu rosto, e mesmo assim continuo frígido qual pedra. Tento, tento. Respiração ainda lenta, superfície ainda intocada, constrangida, involuntariamente virgem e mal-sucedida. Arrepio de frio, mesmo - há tempos não me vem o arrepio da volúpia. E algum dia voltará?
I am the son and the heir of a shyness that is criminally vulgar. Não sei se a culpa é minha. Mas continuo. Havendo escolha, alguém me avise por favor. Minha alma está à disposição, sempre esteve - e dessa prostituição não abrirei mão nunca.

21

Desespero inútil. Ou serve pra algo? Não sei. O que fazer quando não se tem nada sobre o que falar? Eu acho que tenho, até; não sei como me expressar. A cada segundo que passa tenho uma nova sensação de morte, minhas mãos começam a formigar e o ar vai me faltando. Como eu poderia ter cabeça pra pensar em algo para escrever? E, mesmo assim, cá estou eu. Não tenho para onde correr. Estou à mercê desse meu medo insano, bruto e totalmente ingênuo. A selvageria me invade de modo grotesco e não sei como me livrar das noites em claro, por mais que os dias cinzentos sejam alegres com os amigos. Estou cansado, muito cansado. Que fazer para matar a morte que cresce dentro de mim? Anular o pensamento, neutralizar o peito? A parte dois de On the Road não acaba nunca, e nunca vai acabar mesmo, se eu continuar deste modo. Não há mais ânimo, planos, nada. Apenas restos de vida, se tanto.
Sensação de morte, fim, solidão, abandono. Eu queria poder transformar isso em literatura, ou apenas em qualquer forma de expressão que pudesse ser compartilhada com alguém. Eu realmente queria, caro leitor imaginário. Mas em vez disso fico apenas citando o que passa pela minha mente, enquanto ainda tenho algum tempo de sanidade restando. Sinto pela não-qualidade desse texto. No momento é o que me surge, e com grande esforço, confesso.

20

A única coisa que não me agrada, quando vou a concertos, é que esqueço quando tenho que respirar. Os olhos grudam no nada, no fundo do palco ou em algum dos músicos, e ficam lá, fora de foco, enquanto saio de mim mesmo para poder ouvir alguma coisa. Saio do ar. E a vida parece ser boa nesse instante. Não que o pânico não exista enquanto a música flui dentro de mim - utopia demais. Mas melhora. O medo de morrer é sufocado pelo transe em que entro no momento.
A pianista rebolando e indo para trás e pra frente com a cabeça, frenética enquanto tocava, me deu o que pensar. Não que eu goste muito de mulher. Talvez o medo delas seja o que as torna mais atraentes para mim. Enfim. O corpo da pianista romena não cessava, não se cansava, acho que ela teria se jogado dentro do piano de cauda se fosse possível. Sei lá, eu teria me jogado. Mas que desespero é esse de estar sempre fazendo algo, com certeza de estar vivo, sem a sensação de desperdícios? Ah, pro inferno. Uns minutos me bastaram. Agora de volta à belamente bizarra rotina do meu não-ser, que tanto me é querido de tão odiado que é.

19

Sinto-me melhor. Nada como passar as tardes lendo contos sobre mulheres enlouquecidas. A fantasia expurga os meus medos, que são substituídos pelo pânico das personagens. Essa me parece a melhor, a mais linda solução. Se eu seguir os conselhos desses cidadãos que me rodeiam, aí sim já estaria lhe escrevendo direto de uma clínica psiquiátrica, como o nosso velho Holden, querido leitor. Procurei todas as aparentes ajudas que cruzaram o meu caminho. O psiquiatra disse que eu entrei num quadro de pânico, a psiquiatra disse que não era nada demais, o homeopata me alertou sobre um problema nos rins, que, segundo a medicina chinesa, está associado à sensação de medo, e a moça do centro espírita me disse pra ir com deus. Ir para a puta que a pariu, bien sûr.
É. A literatura está aí, para isso. E os amigos, ah, os amigos. Os terapeutas prostitutos. Que seria de mim sem eles? Eles e meus remedinhos. Perfeito.

18

Sempre que chega a noite eu fico assim, sabe. (Sabe?) Sem saber direito como agir, ou o que esperar. Parece que o tempo acabou, prazo expirou. E agora, José? Dormir? Por mais cansado que eu esteja, não consigo. Simplesmente a idéia de passar horas parado, semimorto, esperando o tempo passar, às vezes me atormenta muito. E ficar acordado fazendo o quê? O desespero me atrai em todos os cantos, é o caso mais mal-resolvido que já tive. Mania de perseguição e tédio que deixam essa escrita tão ruim, quase tão sem graça quanto o dia que tive hoje, e ontem, e ontem, e ontem. Passividade exemplar, minha única escolha no momento. Sinto-me fraco o suficiente para, covarde que sou, contestar o mundo com o cu grudado na cadeira. E contente assim continuo. Acabei de ter um déjà-vu, que coisa mais inútil. Lixo, lixo. Não desista de mim, eu lhe peço.

17

Nostalgia infiltrada nas veias qual antídoto. Antídoto pra curar do tédio e da espera. Angústia sem razão, e razão sem ela mesma. Estou seguindo direitinho o formulário, senhor? Sim, senhor. Não, senhor. Está certo. Vou tentar de novo, prometo me sair bem dessa vez, ok? Por favor, dê-me mais essa chance. Coçar o braço nunca me foi tão delicioso. Como é bom escrever mal. Não te dá uma liberdade? A mim dá, uma sensação falsa de estar livre, mas mesmo assim continua sendo uma sensação, e isso já me basta, pelo menos por hoje.
É muito estranho, depois de anos de costume à frieza e aparente indiferença de certas pessoas, começar a desenvolver uma relação de amizade com elas, principalmente se forem seus parentes. Parece que alguém foi trocado, que algum cérebro foi muito bem lavado. Espero não ter sido o meu, mas quase certeza que foi. Coração volúvel qual água; não se agüenta em suas formas. Evapora, mal percebe. Vira lixo e aproveita. A caricatura já está desenhada, de qualquer jeito.
Fim de festa, malas prontas novamente.

16

Ah, o ócio. Bela atividade do nada. Não ser, não estar, não fazer... Fico grato por poder existir, apenas para desfrutar destes momentos de não-existência. Escrever muito sem dizer coisa alguma. Falar - outra atitude dispensável. Não tenho palavras que lhe sirvam, caro leitor. Nem a mim me sirvo direito; apenas continuo tropeçando por aí. Falta de imaginação, falta de inspiração, falta de companhia. Falta, bela, cruel e simplesmente.
Preciso ficar bem acordado por mais alguns minutos, por mais tarde que seja. Culpa da ansiedade e do pânico - só consigo pegar no sono se estiver morto de cansaço. Estou farto de tudo isso. Assim como minha alma é velha, eu também gostaria ter as doenças do século retrasado, e não as do meu. Nem sei por que estou falando sobre isso, de qualquer modo. Deixa estar.
Arrumar as malas novamente e preparar-me. Para um novo tom de cinza.

15

O estado vegetativo só aumenta. Já não tenho mais palavras com quais poderia encher esse papel vazio, essa tela branca. Alguns segundos passam, o cérebro pára por um momento de funcionar. Demora para assimiliar as informações, mas uma hora eu consigo. Finalmente. Ao menos uma parte do todo já não me é tão mais borrada... E a pior coisa do mundo, às vezes, é enxergar com clareza.
Dor nos olhos, de novo. Corpo fraco, ah, esse corpo... Corpo maldito. Quero ser apenas energia, somente algumas partículas. Chega de matéria, de pensamentos, puta que pariu! Estou farto, cansado, estufado até o rabo de infelicidade. De tapa na cara. Pra mim, chega.
Que merdas são essas que eu estou escrevendo? Nem eu mesmo sei. Não sei nem o meu nome, porra. Sou apenas um personagem inventado por uma menina estúpida que acha que está fazendo ficção apenas por não falar diretamente ao leitor. Pior, uma manceba que acredita ter leitores. Coitadinha. Mas eu engano alguém?? Ela engana alguém? Hein? HEIN???!!! Não. Não. Merda.
Não adianta. Sei lá meu nome. Foda-se o meu nome. Por enquanto, continuarei existindo, pois quem me inventou deve ser teimoso e burro pra cacete - tem uma mania imbecil de persistir nas coisas em que acredita que darão certo.

14

Estou há horas sentado, na frente deste computador. Meus olhos estão secos, o pescoço, rígido; a dor na testa contribui para a constante diminuição de sentido em tudo que leio ou ouço. Mesmo assim, não saio do lugar. Permaneço na cadeira, por mais alguns segundos, fingindo estar confortável assim. Eu gosto de fingir pra mim mesmo. É bem gostoso, de quando em vez, a gente se enganar. Como é. Meu passa-vida preferido. Ô delícia! E não é que amanhece? Teimosia. Quisera eu ser assim, tão persistente...
Nada a te declarar, pobre leitor ficcional. Aliás, ocorre-me no momento algo para declarar-te, efetivamente - como não pensara nisso antes? -; declaro a ti o meu amor. O meu mais tenro amor. A insegurança bateu e eu te criei, mas hoje não me arrependo. Vejo como tu me fizeste bem. E que bem! Não me sinto mais tão sozinho, tão não-lido. Afinal (meu querido), quem mais que não tu, pra me ler? Pra aceitar meu não-assunto, engolir meu não-orgulho e reconhecer meu não-sotaque? Ah, sim, digo sotaque mesmo. Vai dizer que não consegues me ouvir? Contra outra. Já está tarde, quero dizer, já estar cedo. Cedo demais pra cair na tua laia, leitorzinho adorado. Não, espera - apenas brinco! Fica mais um pouco, eu te peço. Só não expresso a ti melhor a minha vontade, a minha necessidade, porque estou muito, leia-se muito, cansado. Meus pulsos estão latejando - malditas teclas frias.
Não sei por qual processo estou passando agora (não vás embora - eu imploro); só sei que não é o mesmo de ontem. Não é triste nem feliz. É, apenas. Estou sendo demais, e isso cansa, viste. Cansa mais que tudo isso junto, essa não-greve e esse não-amor. A cada segundo que passa, mais um nervo rijo, mais um NÃO. Pois bem. Escrevo enquanto minhas mãos ainda se movem. Se for preciso, fazem a guerra também - mas que guerra? A não-guerra, é claro.
Está bem, está bem, tu ganhaste... Podes ir, se quiseres. Vou fingir que não me importo. Até mais ver, querido leitor, estou indo morrer afogado em meu próprio orgulho.

13

Sim, sim, caro leitor inexistente. Chegamos ao treze. Superstição e idiotice. Ênfase, por favor, na idiotice. Como poderia eu, por um segundo sequer, ter me atrevido ao devaneio de que desta vez algo sorriria para mim? Vivo me enganando, sempre com a cega esperança de que o treze nunca vai chegar, nunca me alcançaria, pensava eu. Mas nada que existe me escapa. E hoje, aqui sozinho nesse quarto pálido, sinto encravando-me as unhas na pele a crua existência de tudo e ao mesmo tempo de nada. A nojenta, maldita, repugnante às vezes. Prostituta que em meus sonhos é donzela, sonhos meus também malditos. Culpa é primeira infância que nunca há de se conformar. Parece que não tenho memória. Ingenuidade traidora!
Ao menos, pensando bem, não tenho memória racional. Meu cérebro registra sensações, enquanto as imagens nítidas e as informações ficam embaçadas, bem no fundo, insignificantes. Mal aparecem quando fecho os olhos. Só me vem o arrepio de volta, a vontade, o instinto despertado por uma experiência rotineira qualquer. E depois aquela felicidade imbecil, por ter relembrado algo ocorrido apenas dentro da minha mente, cuja realidade cínica é tão bem representada que na maioria das vezes até caio nessas minhas brincadeiras de criança sozinha no mundo.
Parabéns, seu idiota. Isso, isso mesmo, perca mais 20 anos da sua vida deste mesmo modo. Continue brincando com esse fogo de que você gosta tanto, mesmo sabendo que pouco - quase nada - resta de suas mãos cheias de bolhas, em carne viva, latejando e ardendo. Continue, veja até onde chega e depois me conte. Sim, depois me conte, pois cansei de ser sua consciência. Abandonar-lhe-ei por alguns instantes. Só comprei passagem de ida. Quem sabe um dia você não tenta procurar por onde ando. Afinal, a esperança não é mesmo a última que morre? Espero estar muito bem morta antes disso.

12

Argh. Finalmente vieram até mim, de má vontade, algumas palavras. Elas estão cada vez mais arrogantes, frias, ausentes. Nem me dão mais atenção. Vou me aproveitar deste raro momento em que elas me dão uma chance, vou aproveitar como se fosse a última. Estou em cativeiro, mas não há ninguém eternamente responsável por mim.
Passemos ao mundo de fora; minha vida pessoal não existe neste torturante e interminável momento.
Não costumo escrever sobre escritos. Aliás, até que o faço de quando em vez, mas não tão especificamente como o farei agora. Não é uma análise; apenas se trata de pensamentos jogados ao nada. Quem queira, que os apanhe de bom grado. Contente fico. Aí vai, perdoar-me-ão o fictício leitor e o real também - se aí estiver, em algum canto - os erros de português ou de raciocínio.
Se eu tivesse facilidade para chorar, com certeza teria chorado muito nesta leitura. Acho que chorei por dentro. É impressionante como um texto pode conter características tão conflitantes... É tão ingênuo, inocente e ao mesmo tempo tão autoconsciente, cheio de intenção, que dá ao leitor uma felicidade estranha. Não é nada eufórica, é uma felicidade muda, complacente, contida... Não vibra, apenas admira.
Palavras simples e mais plenas de conteúdo e de verdade - ou tão plenas quanto - que qualquer escritura canonizada, qualquer texto acadêmico. É um texto que nos faz acordar, por um segundo. Pena que, para certas coisas, a memória humana é bem fraca. Concordo com o autor e com a personagem - as pessoas grandes são realmente muito estranhas. Tenho medo de um dia ser grande por dentro, também.
Se é possível resumir em uma palavra a sensação que este texto me passou, com certeza diria: melancolia. Até os ossos. Cada palavra está encharcada de melancolia, esta mistura de tristeza e felicidade que às vezes é tão gostosa, e outras tão terrível. Uma energia que luta para não se conformar com o atual estado das coisas, mesmo com quase certeza de que será esmagada pelo mundo. Desistir, jamais.
Não sei se este texto teria um fim. Apesar de o sentimento em questão ser relativamente raro hoje, ainda é universal. Nunca vai se extingüir de todo. Só sei que o autor deste livro se aproxima daquilo que eu chamaria de gênio. Não criou nenhuma invenção, não escreveu nenhum tratado ininteligível de seiscentas páginas; enfim, apenas viveu normalmente, coisa que nos esquecemos de fazer. Pois o ser "humano" está sempre muito ocupado em tentar aparecer, ficar de algum modo em evidência.
Aquele a quem me refiro não é um gênio da literatura, nem da pintura. Seus desenhos são simples, assim como o são as suas frases. A genialidade está na sua sinceridade, sua aparente humildade para com o mundo; para quem tiver vinte minutos de seu dia destinados a dar atenção ao que ele tem a dizer. É tão simples que dá aflição. Tudo se resume em nós apenas darmos uma chance, não importa a que... Estou falando demais.
Não há conclusão. Como diria o poeta cujo túmulo é coberto de beijos, não sou jovem o suficiente para saber tudo.

11

Estou me esforçando. O máximo que posso, sério.
Não adianta. Fico parado uns 10 minutos, descansando os olhos no nada, para ver se a cabeça pensa em algo para escrever. Sinto-me patético. As horas de devaneio em silêncio são em vão, pois não consigo expressar quase nenhum pensamento que tenho. Ninguém entende minha língua. Às vezes fico em dúvida se eu mesmo compreendo. Acho que não... De qualquer modo, sinto-me bem. Sim, bizarro, não? Apesar dessa merda toda em que estou no momento. Triste a situação de quem tem esperança.
Afasia maldita. Quando me vem a idéia, fogem-me as palavras. Melhor eu tentar outra hora.

10

Tentar não pensar. Deixar o corpo se expressar. Afinal, não sou nada mais que isto, meu pensamento, incansável, luta para se emancipar daquilo que se chama de lógica. Alguns neurotransmissores a menos e outros a mais me fizeram o que sou hoje, e não posso negar isso, não importa o que eu diga. Posso chamar o que vivo, neste novo período, de crise. Outro lado de mim considera-o de glória.
Preciso dormir, eu sei, mas não consigo. Não é o que o meu corpo pede no momento. Meu corpo pede música, já prepara sua acústica. Não quer vibrar sozinho. Está inquieto em sua própria euforia, tem sua linguagem e está louco de raiva pois não sabe usá-la. Parece corpo de mulher. Quer sustentação, quer gravidade. Meu corpo quer outro corpo. Não carece descanso. Muito pelo contrário. Quer se cansar, se exaurir até morrer.
Pois não tem nenhuma outra utilização neste quarto insano. Aproveita-te de mim enquanto podes, ah sim meu amor, aproveita. Que hoje sou só matéria. Cobre o meu espelho, que dele não mais preciso. Abro-me a ti em carne viva, fluido escapando. Não possuo mais nome. Não cauterizes a ferida, abre-a ainda mais. Faz-me sentir com todos os nervos que ainda me restam. Sou apenas órgãos e correntes. A quem quero enganar?
Vem, e não saias até que me tenhas feito outro. Quer mudança, sim, ele quer, posso ouvir meu corpo podre dizendo. Faz o que te for necessário; não estou disposto a mudar de idéia. Não hoje.

9

- Por isso que eu fico triste. Quando estou em uma festa, todos ao meu redor estão felizes, completos. Sorriem como se a festa fosse regra, não exceção. Às vezes penso que simplesmente se esqueceram de como é ser triste, como é estar sozinho no mundo, pulsando. E eu estou lá também, mas ainda tenho consciência de mim, o dia inteiro não sai da minha mente a sentença que é existir.
- É bem mais fácil pensar nos outros. As pessoas se sentem confortáveis apenas com o fato de saber que estão inclusas em algum lugar...

Eu estava ouvindo este diálogo entre duas garotas que estavam sentadas atrás de mim no ônibus. Só ouvi até aí, porque o que elas diziam identificava-se tanto comigo que eu não suportei ouvir mais nada. Coloquei a música no máximo e os fones quase estouraram meus tímpanos, mas ainda assim era melhor que encarar a verdade. Só o fato de pensar nisso, ou pensar em pensar nisso... Já me deixa angustiado. Não, não quero. Não agora, por favor. Passei o resto dos quarenta minutos olhando para aquele chão sujo que estava parado, mas se movendo.
Andar de ônibus me enjoa mas sou obrigado a fazer isso todos os dias. Olhar para pessoas estranhas não é ruim, ser nulo não me é uma novidade. Apenas gostaria de saber como ocupar minha mente enquanto minha casa não chega. As aulas apenas voltaram e estou cansado como se houvesse acabado de sair de uma revolução. Irônico, como o resto do que me acontece. Ser medíocre é tão cansativo quanto ser intelectual. Aliás, tudo tem me cansado nos últimos tempos. Quando durmo não sonho mais.
Se ainda escrevo, é porque o que me resta são os atos inerentes a mim. Ler. Respirar nicotina. Escrever o que era pra ser dito e expirar o ar do corpo tão novo, e já tão exausto.

8

Primeira aula de teatro do ano.
Eu já estava sentindo falta, pois pra mim é uma terapia. Nunca fui um bom ator - talvez a timidez nunca me permitirá tal proeza -, mesmo assim, não consigo parar de "tentar". Pensando bem, acho que minha vida sempre girou em torno disso, de nunca parar de tentar, apesar de eu ser um total fracasso em quase tudo que faço.
Várias pessoas novas apareceram, curiosas, para ver como seria a aula. Observei atentamente o público de faces estranhas. Um dos rostos me chamou a atenção. Era de um moço pálido, que parecia ter mais ou menos uns 4 anos a menos que eu. Exalava ingenuidade e pureza. Seus traços simplesmente não desgrudavam de minha retina - tive que me conter e voltar para a realidade.
Tínhamos que formar duplas para um novo exercício cênico, e por uma sorte bizarra, digna de filme hollywoodiano, a minha dupla acabou sendo ele. O exercício simplesmente não poderia ter sido outro - o do "espelho". Cada um tinha que imitar exatamente o que o outro estava fazendo, cada movimento, por mais sutil que fosse. Fui, portanto, obrigado a me concentrar em cada parte do seu jovem e saudável corpo. Minha mente fez o possível para não romantizar demais o que estava acontecendo. Mas no assunto "devaneios" sou um caso perdido.
Romântico irrecuperável que sou, fiquei esperando que os olhos dele dissessem algo. Porém não havia nada neles que eu pudesse ler. O seu próprio vazio já traduzia a minha nova derrota... Aliada a uma antiga frustração.

7

Não teria sido normal se o dia não acabasse estranho. Não teria sido eu, vivendo.
Meio da tarde, tudo nublado, uma inquietação me invadindo. Eu estava aflito, arrumando minhas coisas de novo, pois em quinze minutos estaria entrando no carro dos meus tios para ir à casa da minha avó materna. Digamos que lá não é um lugar em que eu passe dias alegres e confortáveis, em sua maioria. O lugar, na verdade, não é a raiz do problema. As pessoas que nele habitam, estas sim, são um tanto - leia-se "completamente" - incompatíveis comigo. Mal cheguei aqui e já tive uma amostra, antes mesmo de entrar pela porta, de como é ruim estar com um grupo de pessoas por "obrigação". É, obrigação, pois não consigo pensar em outro termo semelhante no momento. Não me lembro de nenhuma outra razão para estar aqui, agora.
Antes de sair e começar o trajeto de carro até a casa de minha avó, meu tio resolveu parar na casa da mãe dele. Já vi que seria mais uma oportunidade para eu me sentir completamente sem graça.
"Quer gelatina?", a mãe do meu tio me pergunta. Em uma fração de segundo tive que montar uma frase negativa, porém educada.
"Não, obrigado. Acabei de almoçar", murmurei tentando parecer menos tímido. Tenho certeza que ela não havia me ouvido ou fingiu ser momentaneamente surda.
Cinco minutos depois, a mulher volta com dois potes de gelatina: um para mim e outro para a minha tia, que também havia recusado a proposta. "Como eu gostaria de simplesmente desaparecer...", pensei. Opção descartada. O que me restava era comer a gelatina.
Li em vários escritos que a gelatina é feita à base de colágeno, o qual é aproveitado dos ossos triturados do boi. Não tenho como ter certeza, pois nunca vi uma gelatina ser fabricada, então preciso levar em conta de que há uma possibilidade da afirmação estar correta. E como um dedicado vegetariano, traí-me completamente ao me render às regras da boa-educação. Comi a gelatina sem fome, sem gula, nada. Nem aquela maldita compulsão que sempre tenho, nem ela veio dar as caras pra tornar tudo menos estúpido (ou mais). Mal pude acabar. Sorte minha que o cachorro adorava gelatina, e a mulher adorava o cachorro.
Voltei pro carro com uma culpa bizarra, pois até agora não sei se traí meus princípios ou não. Os princípios vegetarianos, eu digo. Porque os outros, ah... os outros já foram traídos várias vezes desde que cheguei aqui.

6

Nada como uma experiência traumatizante pra me acordar desse coma estúpido.
Fui enganado pelo único parente que considerava meu parente de verdade. Era a única pessoa digna o suficiente desta classificação. Por alguns segundos, não consigo acreditar que isso simplesmente aconteceu. Não há mais volta, agora, não importa o quanto eu queira transformar tudo isso num produto da imaginação podre que eu possuo. Cada vez mais eu me sinto convencido de que mereço isso tudo que está acontecendo. Preciso reconhecer, de uma vez por todas, que o outro não é tudo. Por mais que eu deseje que seja. Nunca tive coragem suficiente para reconhecer o indivíduo que em mim habita. Mas agora, não resta outra opção, pois todos aqueles nos quais eu me apoiava para continuar a falsidade que eu chamava de vida, todos estão indo pra longe, um por um, inevitavelmente.
Não adianta continuar querendo ser um parasita, pois não há mais nenhuma vítima. Nenhuma pessoa a mais, de quem eu possa sugar um pouco de vida e fingir plena satisfação. Sei perfeitamente o que preciso mudar, apenas ainda não descobri como fazê-lo. E até isso acontecer, o pior será continuar respirando e pensando. Difícil é saber o que é pior - reconhecer mil defeitos ou estar vivo enquanto tento mudá-los. Daria tudo por um segundo de paz. Daria tudo por um cigarro.

5

Já acordo com aquela sensação estranha. Cabeça vazia, apenas observo o que está à minha volta, com uma certa tristeza em ter despertado. Percebo, contrariado, que a beleza ainda está nas coisas que vejo, e sinto raiva. Seria bem mais fácil permanecer triste se tudo fosse um pouquinho mais feio. Estou tentando escrever sobre a beleza das coisas, é isso? Devo estar doente... Não, estou bem. Apenas sou um péssimo escritor.
Que vergonha.
Cheguei ao fundo do poço e lá não há ninguém para cumprimentar. Tudo bem, se houvesse eu não conseguiria dizer oi, tão tímido que sou. Estou sozinho numa casa espaçosa, convivendo com parentes que não fazem muito esforço para me entender. É como se eu falasse uma língua muito difícil de se aprender, então eles vão se virando como podem. Aliás, sinto-me assim também quando escrevo. Será que alguém está me entendendo? Ou, pelo menos, tentando me ler? Tenho quase certeza que não. Mas não posso mais me conter. Escrevo terrivelmente e me recuso a seguir novos padrões estipulados para a acentuação e ortografia da língua que falo, ou finjo falar. Um computador é a única ferramenta de que disponho no momento, e por isso tenho que me submeter, por mais que odeie qualquer manifestação concretizada de evolução humana. Odeio qualquer tipo da chamada "tecnologia". A maldita.
Sempre tive raiva dela. Abomino seus mp3, seus e-books, suas telas-planas. Daria tudo para estar utilizando, no momento, uma máquina de escrever. E mais uma vez ela me pregou uma peça. Só que essa é diferente, veio em forma de pessoa. Conheci uma, pela internet. E desde o dia em que a "conheci" estou vivendo a verdadeira forma do platonismo. Só tenho acesso às coisas que ela escreve, e às vezes parece que não preciso de mais nada. Em outras, tenho a sensação de que tudo me falta. Estou sendo piegas de novo, merda.