130

wireless


em eutanásia
faça-se mestre
na caixa torácica
sustente o novelo:
o osso é oco, faça proveito.
aninhe-se dentro do avesso
pois se não há laços e fios
aprenda a se entremear
em seus próprios vazios.

129

quando morrer
quero ser escritora.

128

ponto de ônibus:
a coluna existe pela dor
e alinha o suor em potencial,
esperando pelo sol.
- desperdício de energia:
não sou consumidor consciente
de mim mesmo -
entramos.
o senhor sentado atrás de mim
pergunta se estou escrevendo uma receita de bolo.
puta que pariu, meu deus.
como eu gostaria que assim fosse.

127

oi, pode entrar,
fica à vontade,
sou toda orifícios.

pode penetrar,
quebre meus ossos,
um a um.

só peço que não se espante
(se eu não me recuperar jamais)
com o tamanho do rasgo,
com o realocar de entranhas

causados pelos seus cílios,
pela sua nuca curvada
- pêlos -
e a sua visão de mundo.

126

Rumo à necessidade aguada
dos teus globos oculares,
No asfalto escuro,
Avisto duas esferas amarelas:
a anti-sombra dos faróis.
Rumo aos faróis, remo.

125

a tua pele merece umas tesouras.
merece a minha tesoura
- sim, eu falo -
o meu falo é assim,
à base dos nervos.

(em uma cena qualquer)
te defolhar,
fo-lhe-ar
lamber tuas camadas
e tuas páginas.

124

Com dores cada vez mais fortes na nuca, ela continuou na mesma posição até terminar a leitura de um livro fininho e, ao mesmo tempo, pesado. Não queria fazer grifos, ou comentários ao pé das páginas. Não sentia a incontrolável ansiedade de transcrever trechos para afixá-los nalgum canto do cérebro. Ou pior: era ausente nela, da mesma forma, aquela ponta de vontade de--
- E aí, Luiz, beleza?
- Oi, Clara. Beleza e aí?
- Tô bem. Cê num sabe o livro que li ontem--
Aquele estar nos outros, aquele sobreviver nos outros, aquele--
- Puts, tenho um monte de coisa pra ler, uns filmes que baixei pra ver,
- É, tamo junto, tempo é nada,
- Como é que a gente faz?--
Estava morta, enterrava-se em seus banhos, em seus ônibus, cobria-se de pessoas.Exercia a memória, deixava a náusea vir.

123

unidos por fones de ouvidos
e algumas desgraças,
o brilho da tela no teu colo
embranquece a nossa mulatês:
na estrada, não temos medo.
a noite imposta, factual,
não me permite esquecer que,
a um nível ou a outro,
somos todos doentes terminais.
permaneço calada, ouvindo.

122-69

Era domingo. Era domingo pra sempre.
Ela deixava o suor se acumular entre os seios,
- seduzindo a si mesma -
Sangrava pelas cutículas, numa tentativa de se alongar pelo quarto:
nos outros, era inteira.
Deixou-se morrer no colchão, agora limpo, e pôs-se a ler a primeira página.
Queria imitar o livro; irracional, abria-se. Arrancava suas folhas.
Fazia, do papel, roupa. Lia o seu sexo em braile.
Ria. Ria muito. Mastigava as letras. (louca.)
E voltava a um sono profundo.


um dois um

Acordou ofegante, sob o bálsamo de seu suor pegajoso - acordou mulher - e não conseguiu enxergar que horas eram. Enfiou os olhos no escuro e sentiu, por um momento, que a superfície deles poderia se romper se olhasse mais a fundo:
Não, não há nada. Volta a dormir, vai, volta.
Não consigo.
Começava a gemer, sem nenhum controle sobre seu corpo, como se o simples produzir de som fosse lhe trazer alguma paz. Revirava-se nos lençóis manchados de sal e um tanto de sangue. Na maioria das vezes, o cansaço a vencia.
Naquela manhã, a sensação de muitas outras: Um sonho pesado, mais real que o acordar. Sonho febril, úmido, interminável e completamente excitante. Levantou, estalando os joelhos, em busca da prateleira mais próxima:
Não tem muita poesia aqui.
Pegou um dos volumes da estante e atirou-o à cama. Será que esse eu leio no ônibus sem querer vomitar?
(Será que algum livro na vida eu leio sem querer colocar as entranhas ao ar?)

cento e vinte

Adorava segurar a bexiga cheia, quase explodindo. Gostava de testar os limites do seu corpo, mesmo de uma maneira babaca como essa.
- Cê não vai me levar pra passear?
Ela perguntou ao Cortázar. O gato não respondeu. Na verdade ele nem estava olhando pra ela.
- Ah, é, esqueci que gatos livres não saem. Sou humana, presa; saio, pois.
Ela tinha trabalho. Tinha dois ônibus pra pegar e um tanto de chão pra caminhar, todos os dias. Mas dava o seu jeito de fingir que era tudo uma puta surpresa. Sua espontaneidade chegava a machucar o olhar alheio, devia ser admirada com moderação. Dias programados e cinzas apareciam, também, para não matá-la de tédio. Há que se mapear, de vez em quando.
Logo cedo deixava o seu apartamento, no centro, com uma sensação estranha de que o havia perdido. Parecia um bebê em formação: precisava olhar para as coisas pra lembrar que elas existiam. Aproveitava o ônibus lotado da Orosimbo Maia para entrar em contato com um calor incômodo e necessário. Tentava ler, mas logo envesgava e enjoava. Mas não queria ouvir música. Colocou, então, o rádio de seu celular numa estação que só dizia as notícias recentes, e logo se sentiu transportada para uma época que não conheceu (talvez aquele fosse o seu masoquismo preferido), uma época de ouvir vozes, prestar atenção, sem rostos, sem telas, sem retinas descoladas. Viciada, deixou-se extasiar e perdeu o fio da meada. Perdeu também a porra do ponto.
- Não importa, ainda tenho rótulas pra desgastar.
Na volta pra casa, separou livros de poesia para tentar ler no dia seguinte.

cento e dezenove

Seus seios, que nunca foram redondos, começavam a cair. Isso não lhe tirava o ar jovem, mesmo quando entrava em transe e fumava uma ou duas carteiras de cigarro em menos tempo do que deveria. Aparentava certa timidez e extrema ingenuidade, que logo se destroçavam, sob o olhar mais atento. Fingia falta de jeito em lidar com elogios, mas vibrava, num prazer estranho e silencioso, ao simples pronunciar de seu nome em lábio alheio. Exercer seu papel lhe contentava, e para dormir também não tirava a máscara, mesmo que dormisse sozinha havia anos. Sua companhia, num apartamento puído de um quarto, cujos azulejos encardidos lembravam uma inocente década de 70, eram seus dois gatos, Cortázar e Clarice. De vez em quando aparecia um ou outro amigo para ajudar a encher o cinzeiro mais rápido, ou abrir uma daquelas cervejas que estavam há meses apodrecendo na geladeira (ela só bebia vinho, de vez em nunca uma aguardente pra limpar a alma). Naqueles pisos de lajota deu os tropeços mais queridos da vida. Sentou inúmeras noites, ouvindo, na vitrola que também ficava no chão, um vinil do Cartola ou do Gardel, desidratando os olhos, tacando cinza pela janela da sala, gritando junto. Acordava rígida e renovada.

118 98459428635

i
telas penduradas
- enforcadas em sua condição de arte -
causam-me espanto e vertigem.
arrepios excitados, inúteis, constróem e removem revolvem reviram a lembrança-lama.

ii
o mundo é máquina de fazer lembrar
engolir, salivar, desenterrar e remoer
as nossas piores dores.

117

cortesia

somos todos filhos da puta:
a puta coesa poesa
ia
cor e corte
nosso sangue está na moda:
esperamos a última foda
lambemos os olhos
e deciframos a morte

116

Because
escrito em 23 de abril de 2011

pegar o vinil, sentir o seu peso. o seu brilho escuro. amar as suas falhas, acostumar-se  aos momentos em que o disco pula, cheio de arranhões, vários donos. sentir o cheiro do seu encarte. aquele cheiro de guardado, de antigo, um quê de podre e único. amar a sua materialidade, um amor sutil. 
observá-lo girando, com a impressão de que vai se desmanchar, toda aquela massa negra irá se derreter sob a agulha. mas ele continua apenas girando.
sentir o peso das coisas entrar pelo ouvido. e as segundas vozes são tão fortes e importantes, que é com elas que você escolhe cantar junto, misturando sua voz desafinada e emocionada ao chiado. importantes por dar totalidade à harmonia. tentar reconhecer cada um dos timbres. tentar imaginar os rostos - a expressão do canto no momento da gravação. morte viva.
uma música que te entorpece, que fode com o seu cérebro, não importa quantas vezes você a escute. a melodia, as vozes juntas, essa união, meu deus, essa união. parecem resumir os anos sessenta em alguns segundos, em algumas palavras. resumem aquele sentimento, aquele mesmo, que você não descreve em cem páginas.

115

você tem jeito de entranha. meus ouvidos, obsoletos:
te ouço com a pele;
te ouço por dentro.

114

da hipermetropia
(...) Sou a dependência que insiste no que machuca
 ao invés de olhar outros caminhos mais reais.

Sou a vida desperdiçada. - Beatriz Guimarães

(O que a barriga vazia te diz? Quanto a mim, não escuto direito. Preciso de mais corpo para ouvir o meu. E talvez, quem sabe, alguma linearidade me cairia bem. Não sou linear, nunca fui - inconsciente e escoliose sempre me dominaram. Faço um esforço, pois, e se não sangrar é porque não deu certo.)

A saúde e a ignorância, típicas da infância, não me permitiram ir muito além em questões de percepção corporal. Se algo estava bom, funcionando, na prática não existia pra mim. Eu descobria o meu joelho quando ele era ralado, e logo depois de algumas lágrimas, voltava para o vácuo de onde surgira. Não me lembro, tampouco, de espelhos. Ou escolher roupas e acessórios - tudo me convinha, e o ridículo era apenas um carinho a mais no rosto.

De modo estranho, algum vapor se desfez e pude perceber as pessoas surgirem à minha volta, qual mágica, com o passar dos anos. Ainda ralas, cinzas, foram ganhando consistência ao toque. A adolescência instalou um paralelo curioso entre o amor próprio confiante e a veneração aos outros. Veneração, como de praxe, cega. Mas essa cegueira envelheceu e tornou-se algo muito mais perigoso, vivamente disposto a ignorar a maldade do mundo - da qual, a esta altura, eu já me tinha dado toda conta possível - uma hipermetropia voluntária.

E não há par de vidros que corrija isso. Quanto mais perto de mim uma pessoa chega, mais tenho dificuldade em enxergar a sua verdadeira personalidade. A proximidade assusta, faz encolher, como a um bicho ameaçado. O diálogo, quanto mais se desenvolve, mais turva a minha mente e estimula aporias internas e doses homeopáticas de uma esquizofrenia docemente maquiada de ansiedade. A imagem distorcida, fruto de olhos imperfeitos, acomoda-se após a retina junto com todos os meus outros devaneios. Assim, sem querer, transformo todos à minha volta em fragmentos estranhos de mim mesma, que só voltam ao seu estado natural à medida que se distanciam. Mas de longe até que enxergo bem, bem demais.

113

(o porquê de eu não gostar de comer frutas)
pensado em 15 de dezembro de 2011.


elas têm uma vida tal que me é insuportável.
(insuportavelmente fluida)
são suculentas, com cores fortes - chega a ser humilhante:
estremecem de felicidade a uma só mordida (ah!)
e soltam rios d'água.

112

sol na cara.
escrito em 20 de março de 2012.

A alça do soutien, caída, aparecia por fora da manga da camiseta. Uma tosse cremosa compunha o ambiente musical junto com o roncar dos motores que passavam. Encurvou o pescoço perto do poste e fez-se fonte: cai, lentamente, um fio de catarro.

Olha pro meu rosto e, enquanto tento manter a face neutra, ouço-a dizer:

- Esse cigarro!

- !

- Pra gente fumá e bebê, tem que comê comida forte. Senãonumdá.

111

haikai de adoração
escrito em 29 de agosto de 2010.


à noitinha, antes de dormir,

leio Manuel Bandeira,

meu anjo da guarda.

110

"Aquela livraria já tem seu piso afundado", você diria, "de tanto que os seus pés sulcam aquele caminho" - uma verdadeira Notre Dame, dilapidada por seus peregrinos - a erosão que é fruto do amor. Não discordo; sigo a confiança já conquistada, os territórios familiares. E hoje não foi diferente, a não ser por um imprevisto: mudaram minha aconchegante seção para outro lugar, e continuei a perscrutar as prateleiras, os pés decepcionados carregando olhos confusos.
(Não.)
Os pés congelaram ao som estranho que invadia uma seção que não era a minha - livros de arte sacra, ou era Monet? não me lembro mais. Um velhinho, em tentativas de diálogo com aquele que parecia seu filho, liberava, a breves intervalos, frases doces e calmas, em italiano coloquial. O carinho inerente à sua voz idosa trancou meus pés ao chão: sem coragem de olhar à minha volta, folheei rapidamente uma coletânea com as obras de Escher, esperando absorver mais daquilo que o filho desperdiçava aos litros.
Voltei pra casa encharcado.

109

do lado de dentro.
(escrevi isso em dezembro de 2010 - tivesse sido ontem, não haveria a mínima diferença.)


Enquanto redescubro o espaço do meu quarto, cuido dele. Cuido dele como se fosse uma extensão de mim, posto que não consigo cuidar diretamente de mim mesma. (Está certo falar mim mesma?)

Sinto-me parcialmente curada a cada atitude que tomo em relação aos meus livros. Toda pilha nova que se forma me é uma bênção. Todo quadro que se pendura. Ou o pôster grudado diretamente à parede, por negligência. Dentro do quarto e dentro de mim. Duas circunferências com o mesmo centro. Parece que algo sempre muda pra melhor. Dentro de mim também estou reaproveitando os espaços e dando vida a muita coisa que estava parada por muito tempo.

Revelar fotos e montar álbuns é algo que também me traz muita serenidade. Pegar no papel, brilhante e fosco, reconhecer os rostos impressos, lembrar do momento em que as fotos foram tiradas. Guardar o álbum no armário. É de uma simplicidade que me deixa estarrecida. É tão fácil sentir-se bem que às vezes machuca. Mudar a posição dos móveis. Sentir o quarto respirar diferente. Rasgar mais uma folha do calendário. Não, não há melancolia aqui pois a passagem do tempo é muito bem vinda e as mudanças anseiam por vir.

E a coleção de marcadores de livros vai aumentando.

108

do que não há

uma ânsia que vem do meio do corpo. não sei exatamente que ponto, parece a boca do estômago. entre um compasso e outro, se alarga num espasmo e torna a se redimir. como pequenos orgasmos que bloqueiam qualquer tipo da mais básica racionalidade. desaprender tudo - escrever torna-se mais penoso a cada dia, e não há refúgio. não há argila, nanquim ou aquarela que sustentem o silêncio das teclas.
não. para todo o sim que houver. perdoa-me, sra. bloom, mas não. o peito sente em ranger neste seu trabalho ingrato. cospe-se aos trancos o pedaço de cada momento belo de existência e não é disso que eu preciso no momento. eu quero facilidade. eu quero literatura podre, decomposta.

107

Cenários e memórias. Gosto do frio pois sinto-me, quase por obrigação, mais aconchegada em relação a mim e aos outros. O frio me lembra sair do banho em plena sauna, e ter que vestir roupas compridas, que grudam no corpo nos primeiros momentos. Roupas compridas me lembram espetáculos, ver a minha vó entre perfume, maquiagem, e camadas de tecido impregnadas de uma singular mistura de cheiro de vó e cheiro de armário. Penso em teatro e ópera, esperar no frio, na fila, enquanto se lê alguma coisa. Os atores com meias-calças e pó branco afagando seus rostos; quase não há suor, no palco também é inverno.

106

olhos secos

A máquina, os botões, as letras. A ausência de vida me conduz, pela mão, à escrita, ao torpor, ao maior dos embasbacamentos. O segundo caderno. Pedaços sujos de papel barato me lembram questou numa metrópole. É com desespero que a busco. Procuro o teatro, procuro o museu, me perco em labirintos de cinema e meias-entradas. Sou uma metrópole - algo que nego. Essa definição nunca me satisfez, o anseio pela calma é maior; a busca do meu interior começa na busca pelo interior, a falsa cidade, o campo ainda visível. Mas hoje acordei, acordei jornal, acordei barata, e não estranhei - pelo contrário, quero mais, quero encharcar o espírito com tudo que não seja eu, quero me anular, quero a cidade, o pulso, a planta morta, o cansaço, a espera, o saudável e diário suicídio. Quero a cidade.

105

um cão, entrecortado, que ainda sofre com a sua não-morte.
seus órgãos são arrancados, um a um,
- por mãos que prefere desconhecer -
e lhes são enfiados goela abaixo.
(a mulher é um cão.)
o cão não tem escolha. sobrevive.
come seus órgãos, come sua felicidade, come sua placenta.
doa-se por inteiro ao nada
e se alimenta de si mesmo.
(o único caminho é o do si-mesmo.)

104

ode à matéria

ode falsa; necessidade.
eu preciso da matéria. do papel de jornal, do livro empoeirado, do vinil mal-cheiroso, do cd novo, do postal carimbado, do vidro de perfume, do porta-níqueis, do pincel de barbear, dos botões (ah, os botões), das teclas, das válvulas, das correntes, correias, das tintas.

103

é tudo metro

desenrola o filme,
põe o negativo contra a luz,
alinha as tuas entranhas,
endireita os quadrinhos,
desvenda o tempo,
desfaz a minha roupa;
e costura a vida de novo.

102

deixei de ler Proust
pra ouvir samba:
cada pedaço do Rio eu busco e afasto com a mesma energia.
(algo inerente, natural, um sotaque úmido)
sotaque reprodutor de vida,
pegajoso, brilhante, mole.
o sal que não sai da pele.

vezes há em que me despenca o céu da cara
(e os olhos, em nuvem, se desfazem)
e reconheço, sem medo, que a minha alma tem cheiro de praia.

101

em tempos incertos, assim,
meu caro amigo,
vou à banca de jornal
enquanto ainda há bancas de jornal pra se ir.

100

ao meu lado, no banco da praça:
um joelho sobre o outro, olhar erguido, enquadrado.
as mãos, leves, repousam em calma e aço.
é esta a poesia natimorta,
a minha e a tua,
são estas as nossas secas entranhas.
é este o nosso paciente desespero
por um pouco de nanquim e espasmo.

99

as vértebras não mentem.
o meu peso é o de um beijo mal-dado
(contra toda maldade)
(e a errância das cabeças.)
ainda me sinto jorrar.

98

ar
aspiro, inchado de sonhos.
tanta aspiração causa-me desconforto aos pulmões
e ao espírito.
pesado, sem domínio de mim mesmo,
sou expelido do mar em fúria,
para o leito macio que me espera com sal e morte.

97

(seja por vômito ou por orgasmo,
o meu corpo tenta te expelir.)

96

num canto empoeirado de meus olhos,
capturo o vulto de um inseto.
focalizo.
desfaz-se a mancha e o que aparece é o número da página.
- um meia nove: que delícia! -
e volto a embaçar a vista.

95

a aversão apaixonada com que tu reages ao meu beijo
- klimtiano -
só me impulsiona a te amarelar mais, inclinada,
e quebrar teu lindo pescocinho.

94

- sabe qual é o problema contigo?
é que você olha muito no fundo dos olhos das pessoas. chega a dar coceira.

93

gentilmente te acompanho
até a porta de saída
do meu cérebro

92

olhar esguio que não alcança nada. mas existe.
atenção dispersa, café ralo, conversa boa. pra quê carecer de mais, meu deus? basta a vida, basta o amargor sutil em cada enlace; farta-me o meu quinhão. não, não preciso precisar de mais. continuo buscando, no entanto. até o ranger dos dentes e o arfar desgastante de costelas.

91

zero

não tenho mais força
(gravitacional)
para orbitar em torno de ti.

de agora em diante
sigo em trajeto
(livre)

90

um inseto cava,

e tu bem o sabes.

kafka não o revela

e clarice o parte em dois.

eu, quieto em meu canto,

observo estarrecido.

89

To Enoch

a coluna curvada não é cansaço.
morra por opção própria.
morra inteiro.

busque paz em cada velório.
não tenha medo de se familiarizar.
enquanto convulsiono,
deixo-lhe meus pássaros no papel.

88

atividade orgânica

a pena que escreve
também teme a leitura:
mãe de um bebê estranho
e seu amor inseguro.
o escrever não cessa, porém.
a necessidade de existir é tanta
que não me importo de nascer
mais umas trinta e cinco vezes
até que a tinta seque
e o papel - pelo simples fato de ser papel -
encubra qualquer feiura.