114

da hipermetropia
(...) Sou a dependência que insiste no que machuca
 ao invés de olhar outros caminhos mais reais.

Sou a vida desperdiçada. - Beatriz Guimarães

(O que a barriga vazia te diz? Quanto a mim, não escuto direito. Preciso de mais corpo para ouvir o meu. E talvez, quem sabe, alguma linearidade me cairia bem. Não sou linear, nunca fui - inconsciente e escoliose sempre me dominaram. Faço um esforço, pois, e se não sangrar é porque não deu certo.)

A saúde e a ignorância, típicas da infância, não me permitiram ir muito além em questões de percepção corporal. Se algo estava bom, funcionando, na prática não existia pra mim. Eu descobria o meu joelho quando ele era ralado, e logo depois de algumas lágrimas, voltava para o vácuo de onde surgira. Não me lembro, tampouco, de espelhos. Ou escolher roupas e acessórios - tudo me convinha, e o ridículo era apenas um carinho a mais no rosto.

De modo estranho, algum vapor se desfez e pude perceber as pessoas surgirem à minha volta, qual mágica, com o passar dos anos. Ainda ralas, cinzas, foram ganhando consistência ao toque. A adolescência instalou um paralelo curioso entre o amor próprio confiante e a veneração aos outros. Veneração, como de praxe, cega. Mas essa cegueira envelheceu e tornou-se algo muito mais perigoso, vivamente disposto a ignorar a maldade do mundo - da qual, a esta altura, eu já me tinha dado toda conta possível - uma hipermetropia voluntária.

E não há par de vidros que corrija isso. Quanto mais perto de mim uma pessoa chega, mais tenho dificuldade em enxergar a sua verdadeira personalidade. A proximidade assusta, faz encolher, como a um bicho ameaçado. O diálogo, quanto mais se desenvolve, mais turva a minha mente e estimula aporias internas e doses homeopáticas de uma esquizofrenia docemente maquiada de ansiedade. A imagem distorcida, fruto de olhos imperfeitos, acomoda-se após a retina junto com todos os meus outros devaneios. Assim, sem querer, transformo todos à minha volta em fragmentos estranhos de mim mesma, que só voltam ao seu estado natural à medida que se distanciam. Mas de longe até que enxergo bem, bem demais.

5 comentários:

F. Carolina disse...

"e o ridículo era apenas um carinho a mais no rosto..."

#difícil é quando percebemos a beleza sincera desses fragmentos quando afastados... fora de alcance.

Al Reiffer disse...

Escreves muito bem, moça, parabéns!

Davi Machado disse...

Cada um que adorne seu próprio altar.
Fico a me identificar mais.

A propósito, você tem feito bom uso das imagens poéticas. Toda esse tema que envolve quem lê, isto é, se absorvem o que é escrito.

Sarah Valle disse...

arquitetado

Antônio LaCarne disse...

maravilhoso, esse texto. incrível o blog. parabéns!